PHDA
A escola deu-me desde cedo dores de barriga, como lhes chamava na altura, pioraram quando começaram os testes, e não havia um dia de teste sem uma noite mal dormida. Tornou-se um problema tão grande que a minha mãe acabou por falar com a psicóloga da escola. Eu era a única da turma que lá ia, tirando a Rita, que tinha os pais divorciados. Não tenho grandes memórias desses dias, lembro-me de fazer desenhos e de não saber responder às perguntas, estar naquela sala fazia-me sentir ainda mais estranha, uma estranha que merecia ser observada por uma adulta.
Às vezes penso como seria se tivesse sido diagnosticada com PHDA nessa altura. Por um lado, poderia dar um nome àquilo que sentia todos os dias na escola, receberia ajuda de alguém que percebesse do assunto, sentir-me-ia menos sozinha, talvez me integrasse melhor na turma e até conseguisse satisfazer o meu grande desejo de ser uma boa aluna. Por outro, a minha desconfiança de que algo estava errado comigo passaria a ser uma certeza impressa num papel, e isso me faria sentir que tinha um problema. Um problema a sério, que me distinguia dos outros meninos. Nunca vou saber ao certo… mas sinto que essa sigla me ocuparia demasiado tempo. Em vez das coisas aleatórias que me entretinham enquanto o professor falava, iria pensar nesse meu grande problema, nessa diferença e no porquê de ter nascido assim. Não sei se é uma coisa que os pais fazem hoje em dia, nem se é bom ou mau dizê-lo aos miúdos. Dependerá de muita coisa. Vivemos tempos diferentes, talvez já seja possível explicar a um miúdo que ter PHDA é normal, que não há razões para se assustar. Mas desconfio que, no meu caso, eu teria tido dificuldade em acreditar nisso.
A informação sobre PHDA está por aí, sobretudo onde todos andamos, nas redes sociais. Vi e reconheci-me. Sinto que começa sempre assim… Há uns anos inscrevi-me numa psicóloga, desabafei sobre a vida e levei meses até trazer o tema da escola à conversa. Ela falou-me da PHDA, que eu na altura já tinha deixado para trás. Recomendou-me um psiquiatra. Contei-lhe o que já tinha dito à psicóloga e acrescentei que nada mudou, que a única diferença é que as dores de barriga agora vinham do trabalho em vez da escola.
Fiz o teste. Foi dos mais fáceis que já fiz, era “sim” a todas as perguntas. E é aí, depois do diagnóstico, que se tem acesso aos comprimidos. Yey! Estava de férias de Natal quando tomei o primeiro de 50 mg de Elvanse. Nesse dia fui à feira de Barcelos com a minha mãe. Foi como se tivesse tomado uma pequena dose de MDMA. Fiquei fascinada com a perfeição das frutas da época, especialmente das abóboras. As galinhas para venda não se escaparam a um cafuné meu. Na parte da louça de barro, desde sempre a minha preferida, curiosamente todas as peças tinham potencial para serem levadas para casa. Tal como tudo o que a minha mãe me dizia.
Eu só pensava “É isto! É esta felicidade que as pessoas sentem. Eu estava à espera de ficar focada, não de ficar seriamente encantada com a vida. É possível estar assim sem precisar de uma droga ilegal? Que maravilha!” O problema foi à noite. O corpo estava exausto, mas a cabeça não parava. Ideias para novos sabores de gelado, planos para fazer surf, a premissa para uma série, o costume, multiplicado por mil. Passei algumas noites sem dormir, mas estranhamente mantinha o êxtase no dia seguinte. Falei com o psiquiatra. A dose estava demasiado alta, por isso baixou-a para 30 mg. As 30 mg já não me davam tanto enlevo, mas pelo menos conseguia dormir.
Apesar disto, confesso que sou pouco informada acerca da PHDA. Muitas vezes desvalorizo coisas que me dizem respeito, tenho receio de ligar todas as luzes cá de cima e de ficar com os cantos todos iluminados. Acho que é melhor assim. Sei que há cérebros diferentes e que o meu tem isto, tal como muitos outros, que a medicação ajuda quando esta coisa começa a complicar-nos demasiado a vida, quando a desatenção, a desorganização e a impulsividade afectam aquilo a que damos valor. É verdade que medicação ajudou-me a estar mais motivada, e que era exatamente aquilo que eu precisava na altura, mas foi preciso mais do que isso para me sentir estável. Tive de perceber de onde vinham as distrações e como aconteciam, o que é bastante difícil quando se está no estado zombie. Depois de detectar as distrações, é mais fácil o alarme disparar, mesmo que seja após quatro horas na Wikipedia. Depois disso, há que criar o hábito (que é o mais difícil).
Há quem consiga ler um livro no meio de uma multidão, escrever enquanto ouve música ou fazer um trabalho enquanto troca mensagens no WhatsApp. Outros precisam do silêncio absoluto de uma biblioteca ou de fechar todas as tabs do computador, e mesmo assim não se conseguem concentrar.
A minha experiência é que a PHDA raramente vem sozinha, traz vergonhas e medos, podendo culminar em isolamento social e depressão. Muitas pessoas também desenvolvem dependências de substâncias, que são a saída de emergência dos problemas, mas por pouco tempo.
Seja PHDA desde a infância, na vida adulta ou apenas falta de foco, que cada vez é mais comum, o melhor é começar aos poucos a perceber de onde vem para poder agir. Digo já que parece ser um trabalho de uma vida, mas acho que vale a pena tentar.




Obrigada por este texto ❤️ Revi-me muito. Eu não eram dores de barriga, mas nunca me sentei numa cadeira na escola primária - estava sempre empoleirada de alguma forma. Na faculdade tinha de sair a meio das aulas mais longas senão desesperava de tanto pensamento contido.
Agora há dias melhores e outros piores, mas uma pessoa vai desenvolvendo estratégias (se resultam já é diferente)