Canalizador
O canalizador chegou ofegante à minha porta. Acontece sempre. Por fora parece um prédio de porte-médio, por dentro um arranha-céus em Manhattan.
Trazia na mão uma maquineta com uma mangueira cor de laranja esguia e outras maquinetas. Disse-lhe olá e convidei-o a entrar. Não teve de andar muito, a sanita, tal como na maioria dos apartamentos na Áustria, tem a sua própria divisão, e no meu caso fica logo ali à porta, não é propriamente uma entrada gloriosa. A sanita estava muito provavelmente no seu auge, brilhante e perfumada, digna de ser a estrela de um anúncio de Cif. Eu sei que ele pensou: “Uma sanita tão cintilante?!… Mas afinal, porque é que me chamaram? Será que foi engano?” Talvez isto seja o equivalente a a lavar os dentes durante 25 minutos e mandar abaixo um shot de Listerine antes de ir ao dentista.
Mas estava enganado. A sanita estava entupida, o autoclismo estava fraco e só trabalhava de vez em quando. Foi um processo muito duro e longo. Passei a tarde de ontem a tentar que a sanita fizesse desaparecer tudo o que nela continha (calma!). Depois de tanta labuta, para evitar usar a dita cuja, não ingeri mais água o resto do dia. Mas valeu a pena. Eu vou fazer tudo o que está ao meu alcance para que ninguém nunca atinja este tipo de intimidade comigo. Estes são definitivamente os meus limites.
Expliquei-lhe o que aqui se estava a passar, o que me deixou logo nervosa. Ele perguntou-me se a sanita tem um tubo por dentro. Eu não estava à espera de perguntas e, francamente, nem sei se foi realmente essa a pergunta. Disse um “não” pouco seguro, porque de facto nunca vi um tubo, mas também nunca tive oportunidade de olhar para dentro da sanita.
É aí que ele põe mãos à obra. É a altura mais tensa, fico muito indecisa entre continuar o que estava a fazer, como se nada fosse, ou enfiar a mão pela sanita adentro, enquanto ele fuma um cigarro na varanda. A segunda hipótese parece-me mais prudente do que ignorar que a minha sanita está sob escrutínio. Eu não tenho receio do senhor, nem sequer de totais desconhecidos cá em casa, mas tenho problemas em fingir que nada se passa na presença deles.
Desafiando os meus instintos, fui para a sala fingir que estava a tratar de alguma coisa importante. Hoje em dia é simples: basta sentar-me frente ao computador, endireitar as costas e escrever muito rápido et voilà, estou em home office. A não ser que ele desconheça esta prática, por ser mais velho ou por ter pouco contacto com gerações mais novas. Se for o caso, respeito não apenas a sua profissão mas também a sua maneira de estar na vida.
Aquele teatro não durou muito, dei por mim a dar-lhe toalhas e a perguntar se precisava de ajuda. Disse-me que não, mas apontou para a maquineta que tinha um ecrã LED que mostrava o interior da sanita. Não antevi este tipo de tecnologia, confesso. Felizmente tratava-se apenas de água, e senti-me a espectadora do programa mais relaxante e harmonioso do mundo. Nada de diálogos, cantorias ou pinotes. Só uma sanita a fazer o seu trabalho. Há muito que não sentia tanta paz interior. Pouco depois, o senhor tinha acabado o seu trabalho. Que alívio. Eu elogiei a rapidez e agradeci-lhe. Tirou as luvas cor-de-rosa pálida, enrolou de volta a mangueira e o tapete que trouxe para os joelhos, e avisou que ia levar tudo para o carro e que voltaria com um papel.
Trouxe a pasta aberta na página do dito papel. O papel era para o senhorio e declarava que ele esteve ali das 8h30 às 9h30 e que fez o seu serviço. Imagino eu, mas, por princípio, nunca leio coisas que assino. Logo depois, num movimento rápido e digno de um tango, o senhor rasgou o picotado e deu-me uma folha amarelada. É um momento que me apanha sempre de surpresa. Aquele papel completamente banal à primeira vista está acompanhado de um outro papel de uma cor diferente, uma cópia do que eu acabara de assinar. UMA CÓPIA NUM SEGUNDO. Óbvio que também não li a cópia.
Isto seria o fim da nossa interacção, não fosse eu perguntar-lhe se ele era húngaro, sabendo bem que a resposta era sim. Ele concordou. Senti nele desconforto, mas não podia deixar esta pergunta à solta. Eu disse-lhe que gostava muito do sotaque e que tinha uma amiga húngara com a qual passo bastante tempo. Ele ficou imóvel e depois olhou para o chão e para a folha, para a porta e para mim, e despedimo-nos. Aquele desconforto deixou-me inquieta naquele momento e nas horas seguintes. Será que ele me percebeu mal? Será que foi uma pergunta inapropriada?
Depois respirei fundo e percebi que ele é só mais tímido.
Como eu.




“Imagino eu, mas, por princípio, nunca leio coisas que assino.” ahahahah adoro ler-te ❤️
Isto é tudo muito bom.
Trata-se de alguém com desenvoltura para resolver uma sanita entupida mas que fica desconfortável se lhe perguntam se é Húngaro.